terça-feira, 17 de março de 2020

Sobre literatura infantil


            Você se lembra das histórias ouvidas em sua infância? Se fechar os olhos por um momento é capaz de se recordar de quem as contava, da voz dessa pessoa e do lugar onde as ouvia? Se a resposta é positiva, é porque viveu uma experiência que a marcou.
Experiências são momentos que vivemos e que nos deixam marcas, nos influenciam em quem somos e no que fazemos em nossa vida. Como afirma Jorge Larrossa, experiência – exper-ientia – é aquilo que nos passa e nos faz outros. O que a caracteriza é o poder de transformação que exerce naquele que a vive.
            Como educadores da infância, temos sempre que nos indagar: que experiências temos proporcionados às crianças na educação infantil?  O que as tem marcado e as transformado como sujeitos na construção de suas subjetividades? Como temos feito das instituições educativas espaços de experiência?
            Sempre que reflito sobre espaços de experiências, me recordo de meus tempos de professora de educação infantil na rede municipal de São Paulo. Me recordo especialmente dos momentos de leitura e contação de histórias. Iniciávamos com um ritual: as crianças deitadas ou sentadas nos tapetes e almofadas que tínhamos na sala e eu tocando o “pim”,    um diapasão, cujo som avisava que a hora da história estava para acontecer. E começava a história! Nem sempre a mesma, nem sempre lida da mesma maneira. Contada “de boca” – como diziam as crianças -  com o suporte dos livros, com objetos, com um cenário especial. Chapeuzinho Amarelo, Bruxa Salomé, Rei Bigodeira e sua Banheira, Três Lobinhos e o Porco Mau, A Velhinha que Dava Nome as Coisas, Vó Nana, Soldadinho de Chumbo e tantas outras histórias especiais povoaram esse momento.
            A literatura infantil é prazer, arte e encantamento, portanto não pode ser reduzida a uma linguagem escolarizada, a um cunho utilitário que tenha como objetivos moralizar as crianças ou servir como pretexto para o trabalho com outros conteúdos, alheios à ela. Edmir Perroti nos lembra que o lúdico não pode ser suplantado pelo didático, e a leitura não pode ser uma atividade enfadonha e moralista, mas uma experiência humana.
            A literatura infantil tem um nascedouro moralizador, surgiu para ensinar as crianças – consideradas passivas e pecadoras - os bons costumes e o comportamento social esperado. A moralização nas histórias tinha na Idade Moderna - a partir do século XIV aproximadamente - um sentido social. Pautadas pela obediência e o controle do adulto sobre as crianças, muitas histórias foram adaptadas dos contos orais de diferentes épocas. 
Mas, ainda que tenham se passado muitos séculos, a ênfase no sentido moralizador e no controle das crianças tem se perpetuado. Não somente na escolha das histórias contadas, mas em muitas práticas sociais vividas nas instituições em que freqüenta.
            Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil está explicita uma concepção de criança ativa, curiosa e imaginativa, que atribui sentido às experiências que lhe são oferecidas. Portanto, se a maneira como as crianças são vistas socialmente se transformou ao longo do tempo, cabe repensarmos também que tipo de práticas sociais – entre elas as experiências literárias - estamos oferecendo e podemos oferecer à elas.

Por que é importante ler, ouvir e contar histórias?
Ler, ouvir e contar histórias é importante porque a fantasia é uma necessidade humana. Todos nós precisamos de doses diárias de fantasia. Isso explica nossa fascinação por novelas, filmes, seriados e/ou livros literários. As historias são fontes de descobertas, encontros e emoções.
               A literatura   alimenta o imaginário, estrutura o pensamento e amplia o repertório de imagens, palavras, situações e contextos. Ao contar uma história estimulamos o poder de imaginação das crianças, a retiramos do seu ambiente comum e permitimos que viaje para um outro mundo, um mundo de sonhos e magia onde encontra um novo universo a ser descoberto. Lugares encantados, assustadores, aconchegantes, com castelos, fadas, dragões, mocinhas, bruxas, reis, rainhas, príncipes e princesas. Desse novo mundo criado através da história, a criança retorna com seu imaginário alimentado por novos cenários, enredos e personagens que coloca em jogo na brincadeira simbólica e nas novas histórias que ela constrói e reconstrói.
    Ler é abrir-se para outras possibilidades de ser e estar no mundo. A maneira como os personagens resolvem seus conflitos e tomam suas decisões, nos faz refletir sobre os modos como vivemos nossa vida e pode permitir uma maior flexibilidade para olhar o mundo. São referenciais de vida e acervo de experiências que nos ajudam a pensar e solucionar nossos conflitos existenciais. A literatura nos permite ver o mundo sob diferentes éticas e óticas.
A literatura infantil é um dos meios mais importantes para o desenvolvimento da linguagem e da personalidade. Contos infantis partem de contextos reais, que envolvem emoções e situações significativas às crianças. Envolvem conflitos humanos e busca por soluções. Tratam de rejeição, medo, carência, amor, felicidade. O contato com os contos ajuda   as crianças a encontrarem soluções pessoais, uma vez que se identificam com os personagens e seus sentimentos e com os conteúdos simbólicos dessas histórias.
Ao ouvir histórias, as crianças aprendem elementos fundamentais da cultura onde vive e de outras culturas humanas. São meios preciosos de ampliar o horizonte da criança e aumentar seu conhecimento em relação ao mundo que a cerca. Se a principal função da educação infantil é a anunciação do mundo para as novas gerações, a literatura infantil é linguagem privilegiada.

Mas o que é uma literatura infantil de qualidade?
           Nem toda história ou livro possibilita uma experiência plena de formação humana. No vasto mundo editorial, é possível encontrar histórias tão simplificadas e monótonas, tão desinteressantes que, no lugar de se constituírem em uma boa experiência, ajudam a afastar as crianças da leitura. O autor Léo Cunha (1998) estabelece alguns critérios que nos auxiliam na escolha de boas histórias e bons livros para as crianças.
Um bom livro, afirma o autor, é aquele que aposta na inteligência da criança e não duvida de sua capacidade de compreensão, portanto,  não tenta explicar todos os acontecimentos, causas e conseqüências de forma detalhada, mas dá espaço para a imaginação e compreensão do ouvinte/ leitor infantil.  
    A qualidade literária é fundamental. Uma bela e envolvente trama que nos encanta em uma história provavelmente encantará as crianças também. O mesmo vale para aquela trama que achamos boba, sem graça e sem sentido. Quanto mais diversificarmos nossas leituras, mais conhecemos diferentes autores, diferentes formas de combinar as palavras, diferentes gêneros literários. Com isso vamos apurando nosso - e o das crianças - senso critico em relação a qualidade literária. Proporcionar experiências com essa diversidade é fundamental: além de contos, é preciso ler e contar poemas, mitos, lendas, fábulas.
     Por fim, é importante lembrar que um bom livro de literatura não pode estar mais preocupado em ensinar conteúdos sobre meio ambiente, comportamentos, trânsito,... do em que contar uma boa história. A literatura infantil é antes de tudo arte, como disse a Abramovich.
              Outra questão que quero tratar é a idade indicada. Definir uma faixa etária específica para que a criança tenha acesso a um livro de literatura infantil é simplificador e reducionista. Crianças tem experiências diferentes com a literatura, o que quer dizer que quanto mais acesso ela tem a boas histórias bem contadas, ela vai exigir maior qualidade literária e vai querer ouvir histórias mais longas. Assim, não limite as histórias por indicação de faixa etárias, leve boas histórias e sinta como as crianças vão respondendo a elas. Você vai ver que muitas vezes crianças pequenas vão pedir para que as repita constantemente. E se a história for muito longa, sempre pode contá-las em capítulo, no caso das crianças um pouco mais velhas.

O papel do educador 
O professor manipula a curiosidade da criança, mexe com seus desejos.  Ele é o responsável por criar uma atmosfera de encantamento. O educador deve ajudar às crianças a descobrir nos livros, sua face mais prazerosa, sua dimensão mais encantadora e envolvente. É ele, aquele que instiga, que promove encontro, potencializa a experiência com a leitura. O modo como o professor demonstra encantamento é contagiante.
Para oferecer boas experiências com literatura infantil, é preciso que o educador se atente para aspectos que ocorrem antes, durante e após a contação de histórias.  

ANTES
       É preciso conhecer bem a história antes de contá-la, perceber como a narrativa  nos toca, nos emociona. Uma preparação prévia, que exige a leitura anterior, é necessária. Como aponta Fanny Abramovich (1989, p. 20) ao pegar qualquer livro em uma prateleira para ser lido na hora, corremos o risco de engasgar em uma parágrafo, não perceber como o autor construiu as frases, ficar escandalizado e/ou ruborizado com uma determinada afirmação, gaguejar,... E, no lugar de proporcionarmos o desejo das crianças em ouvir uma boa história, as afastamos dessa experiência tão importante  de humanização. Contar histórias não é tarefa simples, é um trabalho elaborado que requer preparo, criatividade, estudo da história a ser narrada.
A literatura é uma experiência que se vive com o corpo inteiro. Para escutá-la é importante que o corpo das crianças esteja aconchegado, sendo necessário organizar um espaço que acolha diferentes jeitos de viver essa experiência. São diferentes os jeitos de cada um se relacionar com o espaço, assim como é diferente a relação que estabelece com a história, com as imagens que constrói a partir do que escuta.  Não dá para cobrar uma interpretação única, ou que todos procurem o livro depois da contação, ou ainda que o corpo esteja acomodado do mesmo jeito.


DURANTE
      O que encanta as crianças é a voz utilizada, a expressão facial e corporal, a narrativa interessante e o prazer que o professor tem em contar a história. A voz é o principal instrumento do contador que a empresta para que a história tome vida. A narrativa tem poder de fortalecer a relação afetiva, de criar vínculos e estabelecer relações de cumplicidade entre ouvinte e narrador.
            A significação da história para a criança passa pela postura do educador ao contá-la e há várias possibilidades de se fazer essa contação: contar de “boca”, ler mostrando ou não as imagens, com teatro de sombras, com uso de objetos.
A repetição é importante e em geral, é solicitada pela criança. Na primeira vez que ouvem uma história, as crianças lidam com o inesperado, a expectativa sobre o que irá ocorrer é forte. Nas próximas vezes que escuta, elas apreciam melhor a trama, as emoções sentidas e as revivem.

DEPOIS
    As respostas das crianças não são necessariamente instantâneas. Não podemos controlar a experiência vivida por elas ao ouvirem um conto, nem ter certeza como este as afetou. Essas respostas vêm em diferentes momentos e de diferentes maneiras, como nas brincadeiras no parque, no reconto espontâneo, nas perguntas surpreendentes que fazem em momentos posteriores a leitura/contação ou ainda nos diálogos presentes no faz-de-conta.
Temos que ter muito cuidado para não didatizar a experiência da criança. A literatura trabalha com a experiência vital do ser humano, portanto não é mensurável. A literatura trabalha com sensibilidade, com emoções e é compreendida a partir da própria vida do ouvinte, portanto tem uma dimensão subjetiva e pessoal.
Os diferentes contextos vividos pelas crianças precisam ser permeados de literatura e a escola não deve ser o único lugar promotor dessa linguagem. Mas, a Educação Infantil é espaço de intercâmbio da cultura literária e pode promover projetos de leitura com a comunidade e com as famílias.
            Finalizo essas reflexões convidando à reflexão sobre como tem sido vividas as experiências literárias com as crianças e adultos nas instituições de Educação Infantil e com o desejo de que esse seja um processo permeado por muito prazer e descobertas para todas e todos que dela experienciam.

Forte abraço!


Indicações de bibliografia sobre o tema:


ABRAMOVICH, Fanny, Literatura Infantil Gostosuras e Bobices. São Paulo: Spicione, 1989.

CANDIDO, Antonio. Direitos humanos e literatura. São Paulo: Brasiliense, 1989.

CUNHA, Leo. "Literatura Infantil e Juvenil". In: Formas e Expressões do Conhecimento. Minas Gerais: Ed. UFMG, 1998.

PERROTTI, Edmir, Confinamento cultural, infância e leitura. São Paulo: Summus, 1990.

LARROSA, Jorge. La experiencia de la Lectura: Estudios sobre literatura y formación. Barcelona: Ed. Laertes, 1998.

MAUDONNET, Janaina Vargas de Moraes. Arte y Educación: Por una Pedagogía de la Estética. Monografia de Curso – Facultad de Educación: Centro de Formación del Profesorado, Universidad Complutense de Madrid, Madrid, 2004.

MAUDONNET, Janaína Vargas de Moraes. Crianças Cidadãs? A formação para cidadania na educação infantil. Dissertação (mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003

OLIVEIRA, Shirley. A Arte de Contar Histórias: Elemento essencial na construção dos vínculos afetivos. Anais do Seminário” Protagonista: Os desafios de Educar na Contemporaneidade” Diretoria Regional do Ipiranga. Prefeitura Municipal de São Paulo (mimeo). 2011.





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