quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Ensino Fundamental de 9 anos: Ampliando o debate

Olá Pessoal!
    Como vocês leram na postagem anterior na Assembléia do Fórum Paulista de Educação Infantil, que ocorrerá dia 08 de outubro, o Ensino Fundamental de 9 anos será discutido e contará com a participação da Prof. Ana Lúcia Goulart de Faria, que é uma grande defensora dos direitos das crianças. Por isso, reproduzo aqui um artigo dela sobre o assunto. 

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Para uma pedagogia da infância

                                      Ana Lúcia Goulart de Faria

Começar aos 6 anos de idade a escola de 9 anos pode significar uma profunda transformação na escola e no sistema de ensino

     Neste artigo, falo da infância das crianças de 0 a 12 anos, como define o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Falo da primeira e da segunda etapas da educação básica da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB): a educação infantil para as crianças de 0 a 5 anos e 11 meses, em creches e pré-escolas, e o primeiro segmento do ensino fundamental, as quatro séries iniciais. A articulação entre essas duas etapas da educação básica é a grande novidade legal das políticas públicas, que ocorre depois da revolucionária primeira etapa, que, no papel, já articula creche e pré-escola como um direito das crianças e das famílias e um dever do estado na esfera municipal. Como disse a médica Marisa C. Lobo da Costa, já em 1979, a maior revolução do século XX foi a criação de creches como espaço público para a educação das crianças desde bem pequenas. Ela se referia ao deslocamento da centralidade da educação dessas crianças da mãe e dos pediatras.

     O direito à educação dessas crianças é um direito diferente do direito à educação obrigatória. Diferente também foi a luta para alcançá-lo. O mais recente direito à educação em creches tem inovado a formação docente. Até então, quem exercia essa função eram muitas vezes guardadeiras, enfermeiras, assistentes sociais e, às vezes, até pedagogas, que cuidavam e tomavam conta das crianças, educando sem os referenciais das ciências da educação. Aos poucos, tem sido contaminada a pré-escola, que, muitas vezes, é preparatória e antecipatória do ensino fundamental. Cabe agora contaminar as séries iniciais da escola obrigatória com as práticas pedagógicas não-escolares construídas por profissionais com ou sem diploma, mas que foram construindo uma pedagogia da prática educativa com as crianças pequenas. Para isso, será necessária uma nova formação para as docentes das crianças de 0 a 10 anos.

     As novas diretrizes para os cursos de pedagogia contemplam (ainda deixando a desejar) a formação docente para a educação infantil e as séries iniciais. Alguns cursos de pedagogia já estão contratando professores(as) pesquisadores(as) que estão criando essa nova área de pesquisa: a pedagogia da infância de 0 a 10 anos. Portanto, o curso de pedagogia deverá ser diferente do que sempre foi: formador de professores(as) das séries iniciais e, às vezes, com uma habilitação para a educação de crianças de pré-escola, freqüentemente antecipatória e/ou preparatória.

     O estudo feito pela professora Anamaria Santana da Silva (2003) em seu doutorado, realizado na Faculdade de Educação da Unicamp, sobre algumas faculdades de pedagogia das universidades federais, revela a ausência da formação específica de professores(as) para atuar em creches e em pré-escola como primeira etapa da educação básica. Os cursos de pedagogia, assim como os cursos de magistério, formam professores(as) para ensinar. E a educação infantil - não é à toa que a LDB a denominou educação básica, e não ensino básico - não está centrada na aula, na figura da professora, no binômio ensino-aprendizagem, hoje questionado também para o ensino fundamental. A educação infantil está centrada na experiência infantil, no processo, e não no resultado.

     O que aprendemos nos cursos de pedagogia para poder trabalhar com crianças que ainda não falam, ainda não andam, ainda não lêem nem escrevem com as letras? O que aprendemos - além do enfoque psicológico, este, sim, bastante presente - sobre as crianças de 0 a 10 anos? Como constroem saberes entre elas? Como se dá a produção das culturas infantis nesse espaço coletivo de educação na esfera pública (fora da esfera privada da família), com profissionais docentes que organizam o espaço e o tempo, criando as condições para a produção das culturas infantis? Na verdade, temos uma profissão que está sendo inventada: a docência na educação infantil. Mesmo sem dar aulas, a docente terá sua especificidade com as crianças de 0 a 3 anos em creche e com as de 4 a 6 anos na pré-escola. Assim, os cursos de pedagogia formam para três tipos de docência: na creche, na pré-escola e nas séries iniciais. As professoras de séries iniciais são conhecidas como professoras polivalentes, trabalhando com as disciplinas escolares, enquanto as demais atuam sem disciplinas, mas com campos de experiência, como sugerem as pedagogias italianas (Faria, 2004).

     Partindo de pesquisas sobre o coletivo infantil brasileiro em creches e pré-escolas, temos nosso currículo para a educação infantil em continuidade - 0 a 3 anos e 4 a 6 anos - e agora precisamos inverter o sinal e contaminar a educação das crianças das séries iniciais e construir um currículo para uma pedagogia da infância (Oliveira-Formosinho et al., 2007) centrado na criança de 0 a10 anos: ampliar a formação teórica para a docência com a cultura lúdica e com as culturas da escrita (mesmo que não seja para a alfabetização sistemática desde as primeiras idades), além da formação em arte. Assim, com esses três eixos, teremos uma pedagogia da infância alicerçada em teorias e pedagogias que não segmentam as faixas etárias, embora estejam atentas para as especificidades de experiência vividas pelas crianças e atentas para as diversas formas de organização do pensamento durante a infância, distinta da poderosa organização alcançada com a escrita.

     Mario de Andrade dizia que as crianças são inventivas e expressam essa inventividade nos desenhos, (re)inventando inclusive a perspectiva (Gobbi, 2004). As pesquisas realizadas desde os anos 1970, ao estudar o coletivo infantil, têm mostrado que as crianças são comunicadoras por excelência, são capazes de sofisticadas formas de organização do pensamento e de sua manifestação mesmo antes de ler e escrever. Assim, faz-se necessária uma outra formação profissional docente, também sofisticada, e uma pedagogia para a infância que não seja apenas sinônimo de ler e escrever, que contemple as cem linguagens infantis (Edwards, 1999).

     Partindo dessa outra forma de conceber a infância, ao lado das nossas características continentais e da riqueza da diversidade cultural brasileira, precisamos também ampliar a formação dos(as) novos(as) pedagogos(as) com as teorias dos pensadores da educação de massa, da educação para turmas grandes, professores capazes de trabalhar com idades misturadas, em duplas de adultos sem hierarquia, "alfabetizados" nas cem linguagens infantis, críticos das pedagogias espontaneístas e cognitivistas, superando os binarismos.

     Começar aos 6 anos de idade a escola de 9 anos, tentando superar o roubo de um ano da educação da pequena infância, apenas conquistada, poderá significar uma profunda transformação na escola e no sistema de ensino, problematizando e modificando a atual formação docente para o ensino de alunos(as). Os documentos do Ministério da Educação (MEC) que norteiam a política da educação infantil trazem importante contribuição pela primeira vez na política educacional brasileira: aspectos da infra-estrutura e da organização do espaço físico para uma pedagogia da educação infantil, para que uma pedagogia da escuta, uma pedagogia das relações, uma pedagogia das diferenças possa ser construída, em continuidade com as séries iniciais.

     O convívio das diferenças permitirá que a criança, desde pequena, possa conhecer a origem da desigualdade. Portanto, um(a) docente comprometido(a) com o conhecimento sem dar aulas atuará como se fosse um cenógrafo, um criador de ambientes para que a infância aconteça. Como diz Walter Benjamin (1984), o professor de crianças é como um diretor de teatro: cria as condições para que o elenco consiga trabalhar e dar o seu melhor para entreter, agradar e provocar a platéia, o público.

     Nós, aqui no Brasil, temos sido muito criativos e temos inventado muitas formas de educar as crianças pequenas. Agora, para não perdermos tudo isso, é necessário contaminar a escola de ensino fundamental. O documento do MEC de 1995, intitulado Os critérios de atendimento de uma creche que respeita os direitos fundamentais da criança, é um marco na história da educação brasileira: trata-se de 12 critérios que pretendem garantir a todas as crianças que freqüentam escolas e espaços coletivos de educação as condições para construir a infância (disponível no site do MEC).

     As professoras de pré-escola e as de 1ª série serão aliadas nesse processo e juntas articularão as duas etapas da educação básica. A arte será a grande aglutinadora. A experiência com os ciclos, por exemplo, precisa incluir as crianças de 0 a 3 anos. A construção do indivíduo como eixo central da escola, que geralmente se transforma em individualismo, pode ser ampliada para a construção da infância, do coletivo infantil, da diversidade. Articular o sistema nacional de ensino/educação também com as práticas de educação não-formais pode favorecer a articulação entre as nossas duas etapas.

      E atenção para não cairmos em armadilhas: aumentar o período da licença-maternidade não resolve o direito à educação das crianças pequenas! Precisamos é de uma nova formação docente, que garantirá a continuidade da educação no coletivo das crianças de todas as idades. O compromisso com o conhecimento, produto da formação científica e artística na docência para a infância, favorecerá a construção de uma pedagogia capaz de formar o cidadão de pouca idade centrada em ações integradoras do ser, tais como o brincar, ação humana em que o pensar e o fazer podem não estar dissociados, desde que a intencionalidade educativa do adulto profissional assim o deseje.


REFERÊNCIAS

BENJAMIN, W. Reflexões: a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Summus, 1984.

COSTA, M.L.da. A criança objeto da medicina. Cadernos de Pesquisa, n. 31, 1979.

EDWARDS, C. et al. As cem linguagens da criança. Porto Alegre: Artmed, 1999.

FARIA, A.L.G. de. Orientações e projetos pedagógicos nas creches e pré-escolas italianas. Patio Educação Infantil, ano 2, n. 5, p. 16-19, ago./nov. 2004.

GOBBI, M. Desenhos de outrora, desenhos de agora: Mario de Andrade e seu acervo de desenhos de crianças pequenas. Tese de Doutorado. Faculdade de Educação da Unicamp, 2004.

OLIVEIRA-FORMOSINHO, J.; KISHIMOTO, T.M.; PINAZZA, M.A. (orgs.). Pedagogia(s) da infância: dialogando com o passado, construindo o futuro. Porto Alegre: Artmed, 2007.

SILVA, A.S. A formação universitária das professoras de educação infantil. Tese de Doutorado. Faculdade de Educação da Unicamp. 2003.

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