quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Sobre gênero, infância e educação: algumas reflexões

Desde 2013 venho, junto com as colegas do Fórum Municipal de Educação Infantil de São Paulo e do Grupo de Trabalho em Educação da Rede Nossa São Paulo, acompanhando de perto a tramitação do Plano Municipal de Educação na Câmara Municipal. Participamos das audiências púbicas das comissões de Administração Pública, de Educação e de finanças, sempre nos posicionando a favor do aumento de financiamento para a educação, redução de número de alunos por professor e pela garantia de vagas com qualidade de atendimento para os bebês e as crianças pequenas.

Na última comissão de tramitação do PL que instituiu o plano – a de finanças -  fomos todos surpreendidos com um grande número de oradores que passaram a pautar exclusivamente o debate de gênero no plano. Foram várias falas afirmando, de um modo geral,  que gênero era uma ideologia que destruía a família. Esse debate foi tomando cada vez mais força e encobrindo os outros pontos que viam sendo debatidos anteriormente, desde 2010, por ocasião da 1ª. Conferência Municipal de Educação.

Nos últimos três meses, ouvi diversos oradores, entre os quais vereadores da cidade, fortemente apoiados em discursos religiosos – a imensa maioria de alguns setores ligados  à  igreja católica – argumentando contrariamente a identidade de gênero sob argumentos que desconsideram todo o acúmulo que a área da educação tem tido ao longo das últimas décadas, seja em relação especificamente a gênero, seja em relação à infância e ao papel da escola.

A criança foi descrita  como “tabula rasa”, “plantinha a ser regada”. Desconsidera-se que a criança é um ser que atribui sentido ao mundo a partir das experiências que vive, sejam elas na família, nas instituições de educação infantil e escolas, na relação com outras crianças, com a mídia e em todas as outras fontes na qual estabelece relação. Todos nós somos constituídos pelas nossas experiências, pelo que vivemos e como nos relacionamos com o mundo, com a criança não é diferente! A criança não apenas recebe o mundo, mas significa, pensa sobre ele, constrói hipóteses.   Nós que trabalhamos com a infância sabemos o quanto a criança reflete, pensa e é potente, não apenas um receptáculo de informações.

Nesse sentido, é impossível a premissa de que “a família educa e a escola ensina”, bombardeada recorrentemente pelos defensores de que gênero é uma ideologia. Impossível, porque não somos seres apenas cognitivos, somos seres formados também por corpo e emoções. A escola pública é espaço onde convivem pessoas de diferentes credos, raças, concepções de mundo, portanto é espaço de convivência da diferença. E essa diferença muitas vezes, se torna desigualdade, submissão, desrespeito se não forem trabalhadas, discutidas e refletidas coletivamente. Escola é espaço de ampliação de repertório do conhecimento  sistematizado da humanidade e aprendizado humano, queiramos ou não. Janusz Korczak, no livro: “Quando eu voltar a ser criança”, descreve brilhantemente o significado para as crianças das relações estabelecidas entre elas e com os adultos na escola. Leitura obrigatória a todos que se dispõem a falar de educação!

A falta de aprofundamento nas falas e a repetição contínua de slogans foi a tônica nos argumentos contra a “Ideologia de Gênero e pela família”.  Que família se está falando exatamente? A constituída por pai, mãe e filhos? Essa é o único modelo familiar existente na nossa sociedade?  O único que garante relações sólidas e humanizadas entre seus membros?  “Menino é menino, menina é menina”. Mas, o que significa exatamente ser menino ou menina? Quais são os parâmetros claros dessa diferença? Ser menino significa gostar de azul, jogar futebol? Menina gostar de rosa e das princesas? É assim para todos? O que atribuímos como características dos meninos e das meninas são as mesmas em todas as sociedades? Como outras populações atribuem essas diferenças?  Esse é um bom e necessário debate: O que na nossa sociedade esperamos de fato dos meninos e das meninas? Que papel lhe atribuímos e em que medida esses papeis são marcas de diferenças e/ou de desigualdades? E como ficam as crianças e adultos que não se encaixam nesses parâmetros, são considerados aberração e precisam voltar aos parâmetros da “normalidade”?

São muitas questões suscitadas nesse processo. Precisamos aproveitá-las para debatê-las  profundamente  e em conjunto com toda a sociedade. Essa é a nossa resistência enquanto educadores progressistas que desejam que ninguém seja vítima de preconceito, discriminação, desrespeito, como infelizmente temos visto cotidianamente nas escolas e na sociedade brasileira. 

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