Secretarias de Educação em diversos municípios brasileiros estão
criando metas de alfabetização das crianças no último estágio da Educação
Infantil. Em algumas uma delas, 90% das crianças precisam estar alfabetizadas
antes de ingressarem no Ensino Fundamental com punições para as instituições de
Educação Infantil que não cumprirem a meta. Em outras redes de ensino, foi
aprovado no Plano Municipal de Educação, a alfabetização PLENA de crianças de
até 6 anos de idade.
Ao nos depararmos com políticas públicas como as descritas acima, é
preciso questionar: que concepções de
infância, de alfabetização, de educação estão por trás dessas decisões? O
debate sobre a melhor idade para que as crianças saibam ler e escrever
plenamente não é recente, mas ultimamente a pressão para que esse processo
aconteça cada vez mais cedo tem se intensificado.
A defesa da alfabetização plena (leia-se decodificação do código
escrito) antes dos 6 anos, com estabelecimento de metas a serem cumpridas pelas
escolas, tem significado que as instituições de Educação Infantil devem
privilegiar em seu currículo a linguagem escrita e o aprendizado de sua
decodificação.
Diversos institutos de pesquisa, universidades
e organizações de defesa dos direitos das crianças se posicionam contra essa
prática na ocasião da discussão da Meta 5 do Plano Nacional de Educação - PNE.
Na época o debate entre a alfabetização plena das crianças aos 6 ou aos 8 anos
de idade estava intenso. No PNE, acabou por ser aprovada a alfabetização plena
até aos 8 anos. Esses posicionamentos apontavam para os perigos dessa prática,
que desconsidera os ritmos das crianças e desrespeitam o direito à infância.
Seguem aqui alguns deles:
Fundação Carlos Chagas:
Rede Nacional pela Primeira Infância:
Ação Educativa:
Movimento Interfóruns de Educação Infantil – MIEIB
Contrastando com essa argumentação, está o
Instituto Alfa e Beto na defensa da alfabetização plena das crianças na
Educação Infantil. Sob o slogan: “Sucesso na escola, sucesso na vida”, o referido
instituto vende sistemas de ensino apostilados voltados para a decodificação do
código escrito para redes de educação infantil Brasil afora.
A argumentação em defesa da alfabetização
plena na Educação Infantil apoia-se no fato já sabido que o Brasil ocupa um
lugar baixo no ranking da educação mundial e que muitas crianças saem do Ensino
Fundamental sem saber ler e escrever plenamente. Nesse sentido, defende-se que
se as crianças entrarem no Ensino Fundamental já alfabetizadas, a educação
brasileira atingirá patamares mais altos e as crianças terão mais sucesso na
vida.
Mas o que a
alfabetização “plena” na Educação Infantil tem significado para as crianças?
Não é por acaso que as crianças estão cada vez mais agitadas e
desestimuladas nas escolas e as práticas de controle e de contenção do corpo
infantil cada mais intensificadas. Muitos professores tem apontado a
dificuldade de “segurar as crianças (de 3 a 5 anos, às vezes até bem mais
novas) para que façam as lições”. Também não é por acaso que as crianças
brasileiras estão cada vez mais medicalizadas e nosso país é o segundo em venda
de ritalina (remédio para crianças com diagnóstico de hiperatividade).
Aqui, alguns
artigos sobre a medicalização da infância no país que demonstram como esse cenário
está preocupante no país:
https://scholar.google.com/scholar?q=medicaliza%C3%A7%C3%A3o+na+infancia&hl=pt-BR&as_sdt=0&as_vis=1&oi=scholart&sa=X&ved=0ahUKEwiK6v7HyoPSAhXslVQKHbw0ARAQgQMIGDAA
Não
garantir a alfabetização “plena” aos 6 anos significa que as crianças na
educação infantil não possam ser alfabetizadas? O que é alfabetização e como se
dá esse processo?
Vivemos em uma sociedade em que a
cultura escrita está muito presente. As crianças estão em contato cotidiano com
esta nos anúncios publicitários, nos ônibus, nas placas de ruas, computadores,
folhetos, jornais, revistas, entre outros. Muitas chegam à instituição de
educação infantil curiosas e interessadas em saber como se expressar nessa
linguagem.
Aponta o Parecer das Diretrizes
Curriculares Nacionais de Educação Infantil de 2009:
Também
a linguagem escrita é objeto de interesse pelas crianças. Vivendo em um mundo
onde a língua escrita está cada vez mais presente, as crianças começam a se
interessar pela escrita muito antes dos professores a apresentarem formalmente.
Contudo, há que se apontar que essa temática não está sendo muitas vezes
adequadamente compreendida e trabalhada na Educação Infantil. O que se pode
dizer é que o trabalho com a linguagem escrita com crianças pequenas não pode
decididamente ser uma prática mecânica desprovida de sentido e centrada na
decodificação do escrito. Sua apropriação pela criança se faz no
reconhecimento, compreensão e fruição da linguagem que se usa para escrever,
mediada pela professora e pelo professor, fazendo-se presente em atividades
prazerosas de contato com diferentes gêneros escritos, como a leitura diária de
livros pelo professor, a possibilidade da criança manusear livros e revistas e
produzir narrativas e “textos”, mesmo sem saber ler e escrever” (Parecer DCNs,
2009, p.15).
O parecer atenta para a profileração de
práticas de alfabetização redutoras e mecânicas, que centradas na decodificação
do código escrito (voltadas ao ensino de letras e sílabas soltas), não
possibilitam que as crianças possam fruir ou atribuir sentido à utilização da
linguagem que se escreve, que é justamente o que tem acontecido quando se exige
a alfabetização “plena” antes dos 6 anos de idade.
Sobre o trabalho com a escrita, afirma
Luiz Percival Leme de Brito:
Não pertencer à cultura escrita, numa
sociedade que se impõe por ela, é ficar expulso das formas do espaço real de
existência e de legitimidade. (...) Mas é preciso ter claro que
alfabetizar não é formar no domínio de uma técnica, mas sim pôr a pessoa no
mundo da escrita, de modo que ela possa transitar pelos discursos da escrita,
ter condições de operar criticamente com os modos de pensar e produzir da
cultura escrita. (BRITO, 2005, p. 14) Antecipar o ensino das letras [na
educação infantil] sem trazer para o debate a cultura escrita para o cotidiano
é desrespeitar o tempo da infância e sustentar uma educação tecnicista (BRITO,
2005, p. 16)
Ou seja, incorporar e transitar entre
os discursos escritos é muito mais do que saber as letras e aprender a
juntá-las. Vygotsky, no início do século passado, já afirmava isso em seu
texto, “A Pré-História da Linguagem Escrita”: Ensinamos
as crianças a traçar as letras e a formar palavras com elas, mas não as
ensinamos a linguagem escrita. (Vygotsky,
1995, p. 183). A alfabetização é um processo complexo
e contínuo que exige que as crianças tenham capacidade de simbolização.
Simbolizar significa que as
crianças compreendam que os signos como as letras não significam apenas a
escrita do “A” ou do “B”, ..., mas que por trás dessas letras juntas há significado
e que para aprendê-los, é preciso que se saiba que significado é esse. Como as
crianças aprendem isso? Brincando e desenhando, afirmava Vygotsky. Quando uma
criança de 3 anos pega um tapete e transforma em cobertor de boneca, por
exemplo, ela está demonstrando que por trás daquele objeto há um significado
que vai além do objeto em si. Para ler,
escrever, contar, entender o pensamento científico e artístico, as crianças
precisam passar por uma série de experiências que lhes possibilitem compreender
como esses conhecimentos são construídos e simbolizados, ou seja, o que há por
trás deles. Na ânsia de alfabetizar as crianças cada vez mais cedo antecipamos
processos.
Mônica
Correa nos ajuda a refletir sobre função da educação infantil no mundo das
letras ao afirmar:
Não é na educação infantil que a criança se inicia na
alfabetização. Esse processo se inicia fora das instituições escolares e,
muitas vezes, antecede a entrada da criança nestas. Também não é nessa etapa
educativa que a alfabetização se completará. A educação infantil tem como
principal contribuição para esse processo que a criança se interesse pela
leitura e escrita; fazer com que ela deseje aprender a ler e escrever; e, ainda
fazer com que ela acredite que é capaz de fazê-lo. (CORREA, 2010, p. 15)
Se
acreditamos que as crianças são sujeitos sociais, produtoras de cultura e que
têm como uma característica importante a percepção estética do mundo, as
práticas destinadas à elas precisam ser reveladoras desse princípio. Solicitar
que “desenhem” e repitam letras, façam cópias e exercícios mecânicos de
coordenação motora, por exemplo é desconsiderar essas dimensões do sujeito
criança e tratá-la como um objeto que nada tem a dizer e que não pensa sobre o
mundo, é submetê-las a ordem dos adultos.
É
preciso sempre lembrar que trabalhar com crianças pequenas exige uma escuta
profunda, envolve conhecê-las, entendê-las e apoiá-las em suas dúvidas,
anseios, descobertas, conquistas e desafios. Aí reside a dimensão do cuidado
educativo no trabalho com a infância e que serve
de princípio inclusive nas práticas voltadas à linguagem escrita.
Não podemos nos esquecer que o trabalho
na instituição da infância tem que ser coerente com o universo infantil e com
sua maneira lúdica e estética de construir significados para o que experiência. O
direito de ter acesso ao mundo da linguagem escrita não pode descuidar do
direito de ser criança - e há muitas maneiras de se respeitarem as duas coisas. (CORREIA,
2010, p. 14).
Por fim, deixo aqui um relatório da
Aliança pela Infância no mundo, elaborado por professores de diversas
universidades americanas intitulado: “Crise nos Jardins da Infância: Porque as
crianças precisam brincar na escola”, que analisam os impactos das
testagens e da escolarização precoce no currículo da Educação Infantil.
No marcador alfabetização desse blog há
mais reflexões sobre o processo de escrita na Educação Infantil para quem se
interessar, segue o link:
Fica aqui o meu
abraço preocupado, mais esperançoso que educadores da infância se juntem em
defesa do direito das crianças viverem suas infâncias na escolas de Educação
Infantil e Ensino Fundamental. E que todos – adultos e crianças - possam ser
felizes e possam aprender continuamente sobre o mundo nessa convivência!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Olá! Comente aqui sua opinião!