segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Sobre a antecipação da entrada das crianças de 5 anos no Ensino Fundamental

Olá pessoal,

Segue abaixo uma reportagem da Revista Pátio sobre a antecipação da entrada das crianças de 5 anos no Ensino Fundamental, na qual fui entrevistada.


Fonte: http://loja.grupoa.com.br/revista-patio/artigo/13004/uma-decisao-contraditoria.aspx

Uma decisão contraditória

Reportagem // Silvana Azevedo

A legislação atual determina que as crianças tenham 6 anos completos no dia 31 de março para serem matriculadas no ensino fundamental, mas ações judiciais têm sido usadas para permitir o ingresso antecipado em diversos estados. Quem ganha com isso?
No dia 20 de outubro de 2010, por meio da Resolução n° 6, o Conselho Nacional de Educação (CNE) definiu as diretrizes operacionais para as matrículas na educação infantil e no ensino fundamental. De acordo com os artigos 3° e 4°, ficou determinado que a criança deverá ter 6 anos completos até o dia 31 de março do ano em que ocorrer a matrícula. Aquelas que fizerem aniversário depois dessa data deverão ocupar uma vaga na educação infantil. 

Embora estabelecida pelo CNE, órgão responsável por regulamentar as normas educacionais do país, a resolução tem sido contestada judicialmente desde que entrou em vigor, sobretudo quando envolve as crianças na fase de transição entre a educação infantil e o ensino fundamental. Ana Luíza, por exemplo, faz aniversário em setembro. Em 2011, aos 5 anos, estava matriculada na educação infantil quando o colégio paulistano em que estudava telefonou para sua mãe, Letícia Kuhl Pereira, dizendo que a menina tinha condições de ir para o 1º ano do ensino fundamental, mas não poderia avançar por causa da data de corte. “A escola foi muito parceira, dizendo que iria entrar com um recurso na Secretaria de Educação, mas ele foi indeferido. Aí começou o meu desespero”, conta Letícia. “Encontrei uma notícia na internet e entrei em contato com a advogada Cláudia Hakim”, relembra. 

Por meio de uma liminar, Ana Luíza foi matriculada no ensino fundamental. No ano seguinte, a menina deu início aos estudos bastante empolgada, feliz por estrear uma mochila maior e viver a nova rotina do ensino fundamental com 5 anos de idade graças à atuação da advogada, que já conseguiu aproximadamente 370 liminares. 

Em Recife (PE), Fábio Arruda Câmara, pai de dois meninos, decidiu mobilizar-se porque um dos seus filhos aniversaria em maio. Através do blog Centro de Estudos, da consultora educacional Sônia Aranha, ele verificou que existiam leis estaduais que tratavam do assunto com outras datas. “Tivemos a ideia de provocar nosso Legislativo estadual, mostrando que era uma necessidade da sociedade”, conta Fábio sobre o seu empenho em rever os critérios para ingresso das crianças no 1º ano. 

Ao assumir essa bandeira, tornou-se o grande mobilizador do movimento que ajudou na criação da Lei nº 15.610/2015, segundo a qual a data de corte em Pernambuco passou a ser 30 de junho. Na opinião de Sônia Aranha, o problema da data de corte é que ela é o único critério para a matrícula. “Isso é um complicador, pois não se está discutindo a capacidade cognitiva de cada criança, e sim a data de nascimento dela”, explica.

Cenário de litigância
Em um estudo concluído no início de 2016 pela advogada Alessandra Gotti para o CNE e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), os temas relacionados aos limites etários estavam entre os mais numerosos. “Com a multiplicidade de ações civis públicas que foram movidas, a resolução chegou a ser suspensa em 14 estados”, esclarece a advogada. “Atualmente, a decisão que prevê o corte etário para o mês de março está suspensa em sete estados brasileiros”, afirma.

Consultora da Câmara de Educação Básica do CNE em um projeto sobre a judicialização da educação básica no Brasil, Alessandra também se diz surpresa com o cenário de litigância atual e ressalta que é preciso prever regras para harmonizar e operacionalizar o sistema de ensino no país. Vale lembrar que as unidades da federação são autônomas e, portanto, os estados podem criar as próprias leis.

Presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Alessio Costa Lima explica que a entidade defende a manutenção do corte etário estabelecido pelo CNE por uma questão de garantia do direito de acesso à educação infantil e ao ensino fundamental na idade adequada e por respeito ao processo de desenvolvimento e amadurecimento. “A rigor, a criança já deveria ter 6 anos completos para iniciar o ensino fundamental”, pondera.

ara Lima, permitir o ingresso no ensino fundamental de crianças que façam aniversário até 31 de março já é uma flexibilização, que o CNE julgou razoável. “Quando um pai afirma ‘Meu filho faz aniversário um mês depois’, não é só um mês depois: é um mês mais os três meses de tolerância que já foi dada até o dia 31 de março”, salienta. Ele destaca que a criança que faz aniversário depois da data de corte tem o seu direito à educação assegurado por meio da matrícula na pré-escola.

Idade certa
Por que aos 18 anos um jovem alcança a maioridade? Por que ao completar 60 anos o indivíduo passa a ser considerado idoso? Na opinião da socióloga Rita Coelho, membro do movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (Mieib), não existe uma razão científica para nenhum corte etário. Na educação infantil acontece o mesmo. Porém, ela entende que há dois pontos que se confundem nessa discussão e precisam ser separados para que se compreenda essa problemática.

Um deles é a questão legal, que determina as etapas da educação básica. O outro é a gestão escolar. “Corte etário é uma necessidade de organização do sistema da escola”, afirma Rita. A normatização também tem o objetivo de operacionalizar os sistemas de ensino em todo o país para que, se houver o trânsito das crianças no território nacional e a realocação em outros sistemas de educação, elas possam estar adequadas.

Por mais arbitrária que possa parecer a data de corte, ela é baseada nas características do sistema educacional brasileiro, nas peculiaridades das crianças e no espelho das tendências internacionais, sobretudo nos países da América Latina onde o ensino fundamental tem início aos 6 anos. Ainda assim, há famílias que ignoram a resolução e matriculam seus filhos com 5 anos sob argumentos como o de que as crianças de hoje são diferentes das de ontem. Para Rita Coelho, no entanto, esse comportamento é um reflexo da tendência de aceleração que existe na sociedade atual. Além disso, como a maior demanda pela antecipação ocorre nas escolas particulares, ela acredita que também exista um interesse econômico, o que representa um ano a menos de despesa no orçamento familiar.

A educadora Janaína Maudonnet, membro da comis­são gestora do Fórum Municipal de Educação Infantil de São Paulo, alerta que, para ler, escrever, contar, entender o pensamento científico e artístico, as crianças precisam passar por uma série de experiências que lhes possibilitem compreender como esses conhecimentos são construídos. “Elas precisam brincar muito de faz de conta para entender que o mundo da escrita, dos números, da ciência e da arte é feito de símbolos”, observa.

Janaína destaca que as crianças precisam aprender a simbolizar o mundo, o que só se faz brincando, desenhando, pintando, esculpindo e tendo oportunidades de aproximação com o mundo escrito, matemático, científico e artístico de forma lúdica e contextualizada. “Na ânsia de que a criança vá para o ensino fundamental, antecipamos processos e dificultamos para ela a compreensão do mundo”, explica.

Além disso, a educação infantil tem uma organização de tempos e espaços, uma forma de se relacionar com o conhecimento que é mais respeitosa às condições da infância. “A ansiedade em antecipar processos importantes de serem vividos pelas crianças pequenas nega seu direito de viver plenamente sua infância e aprender a complexidade do mundo”, lembra Janaína. É certo que isso traz consequências para o seu desenvolvimento cognitivo, afetivo e motor. “Infelizmente, temos visto nas escolas cada vez mais crianças muito cansadas e desestimuladas com o conhecimento. É isso que queremos para as novas gerações?”, questiona a educadora.

Arrependimento
O Mato Grosso do Sul acompanha a legislação, mas Mariéte Félix Rosa, do Conselho Municipal de Educação de Campo Grande, constatou que muitas crianças que aniversariam depois da data de corte foram matriculadas com 5 anos devido a ações movidas pelos pais. “As famílias pensam no futuro e esquecem o presente”, afirma. “A criança precisa viver o momento da brincadeira, da infância, e esse momento está sendo cortado.” Ela conta que chegou a ver escolas que serraram os pés das mesas e cadeiras para adequá-las ao tamanho das crianças.

De modo geral, a estrutura de uma instituição de ensino fundamental não inclui as exigências de uma escola de educação infantil. O parque para as crianças brincarem é uma delas. E não são raros os que se arrependem de precipitar a progressão das crianças na escola. “Houve pais que nos procuraram querendo que o filho retrocedesse um ano”, revela Mariéte. Também houve casos de famílias que, após terem conseguido matricular a criança no ensino fundamental com 5 anos, pediram que ela repetisse o primeiro ano, o que seria impossível pela legislação: “No momento em que ela poderia permanecer na educação infantil, o pai ou a mãe optou por fazê-la avançar e depois se arrependeu, mas não havia mais o que fazer”.

Ciente da importância dos ritmos de desenvolvimento de cada criança e do contexto pessoal, a pedagoga Sônia Sampaio, de São Paulo, optou por manter a filha Letícia um ano a mais na educação infantil antes do ingresso no primeiro ano do ensino fundamental. Apenas trocou a menina de escola para que ela não repetisse o conteúdo. Não se arrependeu. “Minha filha conviveu com crianças de 4 e 5 anos na mesma classe, conforme um projeto político-pedagógico que desenvolveu ainda mais sua autonomia e suas habilidades”, conta.

Para Letícia, foi um ano de muita diversão, pois, além das atividades desafiadoras na sala, diariamente havia práticas na área recreativa, com brinquedos e tanque de areia. “Quando minha filha entrou no 1º ano, com 6 anos completos, aprendeu a ler, escrever e obteve sucesso na aprendizagem, o que contribui para o sucesso que ela tem hoje no 5º ano”, destaca a mãe da menina. Apesar disso, Sônia admite que, se não tivesse a oportunidade de mudar a filha de escola, teria optado por matriculá-la no 1º ano do fundamental por considerar o currículo com conteúdo repetitivo e “muito fechado, uma grade, no pior sentido da palavra”.

REPETIR NÃO É REPROVAR
Ficar mais um ano na educação infantil não é problema. Cabe aos educadores garantir a qualidade da permanência.

Jaqueline Pasuch, professora do curso de pós-graduação em Educação da Universidade do Estado de Mato Grosso e integrante do Fórum Nacional de Educação (FNE), explica que, para a criança, cada experiência é única e irrepetível. “Não existe esse argumento de ‘Ah, ele vai repetir tudo de novo’. A criança repete aquilo que lhe dá prazer”, defende. “Nessa idade, as crianças gostam de voltar naquela experiência que foi legal.” Também é preciso considerar que o fato de novos coleguinhas serem inseridos no grupo já traz possibilidades reais de novas vivências. “O problema é que, para os adultos, repetir significa reprovar”, observa. Por isso, ressalta a importância de que a escola estabeleça um diálogo com as famílias. 

A educadora lembra que a Constituição Federal de 1988, quando inaugura a visão da criança-cidadã, diz que ela é um sujeito de direitos no nosso país. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB), por sua vez, legitima o direito da criança a uma educação infantil de qualidade, ofertada por instituições que respeitem os seus direitos como sujeitos ativos, protagonistas da sua história e da sua infância. “Nós, adultos, temos de garantir a qualidade na educação infantil, respeitando essa dignidade, proporcionando um desenvolvimento integral, embora, historicamente, coloquemos a criança em um lugar de inferioridade”, diz Jaqueline. “Respeitar ou responder às vaidades adultas sem olhar o desenvolvimento da criança é uma prática suicida, é uma violência”, alerta a professora.

Em sua opinião, flexibilizar a data de corte seria o mesmo que dizer que as crianças não têm direito a ser crianças, a viver a sua infância em tempos adequados. “É como se quiséssemos, nesse mundo capitalista e frenético, trabalhar com a criança para que ela entrasse logo no mundo adulto.”


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