quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Entendendo melhor o complexo sistema educacional estadunidense




Recentemente, a revista Nova Escola publicou uma reportagem (Informe publicitário) sobre as “maravilhas” das escolas estadunidenses, como se fosse possível padronizá-las.
O fato das escolas nos Estados Unidos serem regidas pelos distritos traz uma grande diferenciação entre elas. Dependendo do distrito escolar e do bairro em que a escola se encontra, elas podem ter maior ou menor estrutura e oportunidades educacionais para seus alunos. Os distritos escolares podem ser localizados em apenas uma cidade ou podem abarcar várias cidades.

Para entender melhor essa complexidade, trarei como exemplo, as escolas em que meu filho estudou no país, ambas no estado da Califórnia. A primeira foi na cidade de Irvine, em Orange County, um dos condados mais ricos do país. As escolas do Distrito Unificado de Irvine (IUSD) contam com um ótimo padrão de infraestrutura, profissionais bem pagos e uma média de 30 alunos por sala. Nessa cidade, parte dos impostos de moradia são destinados às escolas. Como os impostos são mais altos, as escolas recebem uma considerável verba suplementar. Além disso, contam com doações das famílias. Em uma única noite, presenciei a doação de 10 mil dólares de uma única família. Todas as escolas são públicas e gerenciadas pelo IUSD.

Ao nos mudarmos para Los Angeles, encontramos propostas de escolas bem diferenciadas. O Distrito Unificado de Los Angeles (LAUSD) é o segundo maior dos país, com mais de 1000 escolas. Boa parte delas são charters (públicas com gerenciamento privado). Há um padrão de infraestrutura comum, com quadras poliesportivas, bibliotecas, salas de música, auditório, contudo dependendo de onde a escola é localizada, as condições desses espaços, a quantidade e estado dos materiais disponíveis varia. Escolas localizadas em bairros de população de maior poder aquisitivo, tem verba suplementar pela doação das famílias. Contudo, escolas com alto número de estudantes de baixa renda recebem suplementação de verba federal ( Tier I[1]) para alimentação, contratação extra de professores para programas específicos, compra de materiais,...

Para além da diferenciação entre escolas, chama a atenção no LAUSD a diferenciação de oportunidades educacionais dentro das próprias escolas. Ao contrário de Irvine, que tinha o mesmo padrão e as mesmas oportunidades para todas as crianças, Los Angeles conta com 4 programas para os alunos, dependendo de sua capacidade individual (“mérito”). São elas:
1. O programa regular, denominado de “Commom Core”, que segue o padrão de exigência do currículo comum do país nos moldes da Base Nacional Comum Curricular);
2.  O programa Honors, para crianças que tem notas mais altas e são compreendidas por seus professores como mais avançados do que a média;
3. Programas para as "Crianças talentosas": Escolas Magnet e o programa SAS "Schools of Advanced Studies");[2]
4. Programa para crianças super dotadas: o Highly Magnet

Nos  dois últimos casos, as crianças são diagnosticadas por meio de testagem específica.

Quanto mais avançado o grau em que a criança é diagnosticada, mais oportunidades educacionais lhe são oferecidas. Enquanto uma criança que está no “common core” estuda em uma sala com 40 crianças, com poucas possibilidades de passeios extraescolar, quem estuda no programa  Highly Magnet tem apenas 25 alunos por sala, professores mais qualificados (eles precisam passar por testes para ministrarem aulas lá) e uma série de passeios extraescolares. Além disso, alguns programas contam com impressora 3D, computadores disponíveis para todos os alunos, entre outros materiais.

Ao conversar com alguns professores e familiares para entender como justificavam essa diferenciação, a meritocracia pareceu naturalizada em suas falas.  Segundo eles, as crianças que estão em programas avançados, são mais talentosas, estudam mais, se esforçam mais. Diferenciação nas condições de vida dos estudantes não foram considerados nessa equação.  

Já há uma intensa produção científica na área da educação que correlaciona desempenho educacional com condições objetivas de vida. Mas a justificativa desses programas desconsidera essa disparidade social e penaliza a grande massa das crianças que vivem em condições desiguais de vida. Embora não seja a maioria, ainda há muitos estudantes no Estado da Califórnia e em Los Angeles especificamente, que vivem em moradias precárias, como cortiços, albergues, hotéis e em carros. Só para se ter uma ideia, no ano escolas de 2017-208, “havia 4,3 milhões de estudantes do ensino fundamental e médio em desvantagem econômica na Califórnia, incluindo 274.714 sem teto, de acordo com dados do departamento de educação”.[3]

Em recente artigo publicado na “Harvard Political Review”, Sienna Nielsen apontou que as escolas “Magnet” não conseguem lidar com a desigualdade educacional. Segundo ela, “tentativas de criar condições equitativas, dando uma educação adequada apenas aos melhores e mais brilhantes, negligenciam a grande maioria dos estudantes minoritários e perpetuam a lacuna de desempenho. Não há dúvida de que deve haver algum tipo de reforma educacional para proporcionar uma educação igual. No entanto, o foco nas escolas magnets estão apenas resultando em segregação”.[4] Ou seja, a diferenciação das crianças por mérito tem produzido mais desigualdade educacional do que oportunidades educacionais para todos, E essa tem sido uma opção não apenas do Distrito de Los Angeles, mas de vários outros pelo país. 


O discurso em defesa das escolas estadunidenses publicado na revista Nova Escola e  bastante difundido pelo Brasil, desconsidera as contradições e inequidades do sistema educacional e aponta um modelo que não existe no país.






[1] Para saber mais sobre o Tier I : “Tier I: “fornece assistência financeira às agências educacionais locais (LEAs) e escolas com alto número ou alta porcentagem de crianças de baixa renda famíliar -inventário para ajudar a garantir que todas as crianças atendam aos padrões acadêmicos estaduais desafiadores. Atualmente, os fundos federais são alocados por meio de quatro fórmulas legais baseadas principalmente nas estimativas de pobreza do censo e no custo da educação em cada estado”.


[2] Para saber mais sobre os programas para crianças Gifted/ Talented (GATE):“Professores de alunos superdotados / talentosos diferenciam o núcleo currícular através de vários meios, incluindo flexibilidade de agrupamentos, aceleração de conteúdo, estudo independente, hierárquico, tarefas, centros de interesse, centros de aprendizagem, compactação de área, mentorias, perguntas de ajuste, honras e cursos avançados de colocação e uso de recursos de nível superior. Um programa escolar local deve obedecer com um padrão mais rigoroso, proporcionando diferenciação, em vez de instruções "tamanho único para todos" como parte integrante do dia escolar regular”. 


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